Chroma - Arte e Natureza

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    Elza (ou A Confissão)

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    Alexandre Garcia da Silva


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    Elza (ou A Confissão) Empty Elza (ou A Confissão)

    Mensagem  Alexandre Garcia da Silva Seg Set 10, 2012 3:21 am

    Mas a verdade, amigo vão, é que Elza morreu há muitos, muitos anos. Quando ela tinha apenas treze anos. Quando ela, ainda menina, começava a ser mulher.
    A vila não deveria ter vicejado naquela curva desenhada pela fúria metálica do trem que passava prenhe de viajantes cansados e embrutecidos. Mas, ahh... a teimosia em querer existir! Quanto mais miseráveis, mais insistem em vingar. Sua fragilidade é uma blasfêmia à própria vida. Sua sofreguidão, uma força que nem os deuses aceitam.
    A verdade, amigo vão, é que, apesar das dificuldades, das privações, Elza amava viver. Apesar do imaturo desprezo que eu lhe votava, Elza gostava de mim. Mas, o que ela, tão menina ainda, poderia saber do amor, da vida? E o que de fato podemos saber? Apenas nos agarramos, frágeis e sôfregos. E quanta coisa pode a carne conter, apesar da sua triste condição! Quanto poder para urdir mágicos encontros, uma silenciosa poesia, com a precisão inocente dum simples gesto! De repente são a sofreguidão e a fragilidade o que ela tem de mais belo. O corpo renuncia à crisálida da infância para sofrer as transfigurações clamadas pelos exercícios do amor e pelas batalhas contra e pela vida. Os deuses, com seus corpos de luz imorredoura, jamais poderiam compreender a frágil força humana destes membros. Os deuses, com seus corpos do mais puro mármore, jamais se importariam com a benta e angustiante condição deste corpo, vaso de tantas inquietações.
    E quanto à Elza, amigo vão? O vaso foi rompido numa libação à fúria metálica do trem. Os trilhos foram tintos da calidez ingênua do seu sangue. E elza foi inumada. Pela terra. Pelo olvido. E deificada no remorso. Pois o culto não pode abolir o medo.
    Mas, amigo vão, o que é isto tudo? Confissão? Metáfora?
    Letras.
    Gravadas num pergaminho? Estiletadas numa tabuinha de Nínive? Não. Nada mais nobre que uma reles esferográfica. Mas, o resultado... letras. Uma brincadeira blasfema que revela e oculta.
    E que estremecimento é este? Ou melhor, que estremecimento é este que eu não posso mais? Pois agora sou só um raciocínio febril? Era tarde da noite, amigo vão. Até os relógios estavam mortos. Da gelidez negra da noite o apito dum velho trem de carga gritou sua fúria. E o peso cansado que ele rastejava pelos trilhos fez tremer os pilares da cidade. E o leito onde eu e Elza dormíamos. Sim, amigo vão. Elza agora era letras que eu tentei costurar na mais bela metáfora que me permitiu o parco talento. Elza, a luminosa cortesã, a divina hetaira, acordou sobressaltada, pois ainda é a mesma dor. Pois os corpos morrem, os vasos se rompem, mas a dor é um éter que permeia o todo de tudo e contamina até aquilo que brota da minha escrita.
    Então, acariciei-lhe as rimas olorosas do seu dorso. E Elza, nua de métrica, tornou a dormir feito um haicai.

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