Às vezes, um fato banal, que normalmente seria esquecido no dia seguinte, me provoca umas cólicas nos neurônios encharcados de cafeína.
Outra vez, um programa de televisão. Não me lembro qual pois na ocasião apenas migrava de canal em canal pra movimentar o vazio do momento. Posso dizer que era um documentário televisivo, no mesmo formato e horário do "Globo Repórter" (mas não era o "Globo Repórter") e que o tema era uma tribo de índios (qual? não sei, mas neste momento não importa). Eles encenavam um de seus rituais, uma de suas danças ao mesmo tempo multicoloridas e marciais. Estavam todos nus, claro. E, consequentemente, era perfeitamente possível ver-lhe as genitálias. Melhor, as vergonhas (tão "altas e saradinhas", como diria seu Pero). Até aí, nada de novo.
Nada?
De repente, ou dias depois, ou anos depois (novamente, não sei, mas neste momento também não importa), fiquei a matutar: com todo seu (ainda) conservadorismo, a "nobre" televisão brasileira jamais exibiria o nu frontal de quem quer que fosse. Ainda mais antes da meia-noite. A nudez do ser humano incomoda. Excitando ou causando asco (ou ambas as coisas... ah, a nossa ambiguidade!), a nudez incomoda. Portanto, minha cara e meu caro, só com tarja. Ou depois de certo horário.
Por que então, diabos, a nudez do índio, ou de um membro duma tribo primitiva na África ou na Austrália, não causa o mesmo efeito? Há alguma diferença entre o corpo deles e o nosso, morfologicamente - e logicamente - falando? Claro, você pode dizer que é natural, que faz parte da cultura deles, essas explicações (pseudo) antropológicas. Nas quais eu mesmo muitas vezes me apoiei. Mas, naquele dia, as cólicas nos neurônios estavam realmente de matar!
Então, a questão é essa? Cultural? Pois bem. Peguemos outro exemplo: o naturismo também é um produto cultural. Ao menos, de alguns grupos específicos. Jamais vi uma reportagem sobre essa prática na TV aberta sem que se recorresse às horríveis tarjas. Por que essa diferença?
Por que temos olhos maliciosos para a nudez das pessoas em geral mas não para a nudez dos índios? Sinal de respeito por eles? Creio que não. Creio que seja justamente o contrário.
Certa vez, li numa revista especializada em história que, na Roma antiga, as mulheres das classes mais abastadas e que, por isso, contavam com escravos para os serviços domésticos, tinham todo o pudor em se despir diante de homens que não fossem seus maridos, por exemplo. Claro, nesse ponto, elas não diferiam das pessoas dos nossos tempos. Mas - pasmem - elas não tinham nenhum constrangimento em tomar banho, por exemplo, na frente de seus escravos, inclusive os do sexo masculino. Claro, por serem escravos, por não serem cidadãos romanos, eles não eram seres humanos, como o seria um romano livre. Eram coisas, animais domésticos, mas não gente.
Não se passará o mesmo na nossa visão da nudez adâmica dos índios e demais povos? Em outro tópico em que tratei da cineasta Leni Rienfesthal, comentei seu trabalho fotográfico com tribos africanas. A matéria que li no jornal na ocasião trazia algumas das fotos que ela tirara na ocasião. E nelas via-se nitidamente o pênis de alguns dos homens da tribo. Foi a única vez em que vi um nu frontal num jornal de grande circulação, voltado para o público elitizado. Por quê?
A, digamos, "nudez primitiva" não nos incomoda. Não afeta nosso pudor. Simplesmente por ser primitiva. Por mais que procuremos ter uma visão despida de preconceito em relação aos nossos irmãos não "civilizados", por mais que nos preocupemos com sua condição, que respeitemos e nos encantemos com sua cultura, ainda assim o vemos como inferiores a nós. Ainda o vemos como num estágio inferior ao nosso. Numa forma de vida mais inocente, mais pura. Ainda o vemos como crianças, como incapazes.
O adulto, por várias ou todas as razões do mundo, vê-se superior à criança. A nudez de um menino de apenas 05 anos, por exemplo, jamais provocaria uma reação negativa num espaço público, repleto de senhoras. Não preciso dizer como essas mesmas senhoras reagiriam à visão da nudez de um adulto. Ela incomodaria não pela nudez em si, mas por se tratar de um adulto. E de um adulto "civilizado", pois aí ele seria um igual.
Anos antes ainda a esse programa com os índios, lembro-me de uma matéria no "Fantástico" sobre as péssimas condições de vida dos internos num manicômio. E, num determinado momento, a câmera conservadora da Rede Globo não teve nenhum problema em mostrar, ainda que rapidamente, uma interna completamente nua tomando banho de sol no pátio imundo. Claro, assim como o primitivo, o louco também é uma criança, um incapaz. Sua nudez jamais me ofenderá pois eu sou adulto, responsável, civilizado.
A coisa é tão sutil e, ao mesmo tempo, tão grave e irônica que, se de repente as diversas mídias, por exemplo, começassem a exibir índias nuas para o deleito dos marmanjos de plantão, ela, a despeito do machismo, estaria mostrando um pouco mais de respeito por essas mesmas índias pois, ao contrário do que se faz hoje, elas, com suas vergonhas tão altas e saradinhas, estariam sendo mostradas como o que realmente são: como mulheres tão mulheres quanto uma advogada com um escritório na Av. Paulista ou uma atriz de Hollywood ou uma dona de casa da periferia de Salvador. E não como bichos que vivem no meio do mato.
Mas, imaginemos o melhor dos cenários: a nudez, seja ela "civilizada" ou "primitiva", ser mostrada como o que realmente é - algo belo que merece respeito e admiração.
Outra vez, um programa de televisão. Não me lembro qual pois na ocasião apenas migrava de canal em canal pra movimentar o vazio do momento. Posso dizer que era um documentário televisivo, no mesmo formato e horário do "Globo Repórter" (mas não era o "Globo Repórter") e que o tema era uma tribo de índios (qual? não sei, mas neste momento não importa). Eles encenavam um de seus rituais, uma de suas danças ao mesmo tempo multicoloridas e marciais. Estavam todos nus, claro. E, consequentemente, era perfeitamente possível ver-lhe as genitálias. Melhor, as vergonhas (tão "altas e saradinhas", como diria seu Pero). Até aí, nada de novo.
Nada?
De repente, ou dias depois, ou anos depois (novamente, não sei, mas neste momento também não importa), fiquei a matutar: com todo seu (ainda) conservadorismo, a "nobre" televisão brasileira jamais exibiria o nu frontal de quem quer que fosse. Ainda mais antes da meia-noite. A nudez do ser humano incomoda. Excitando ou causando asco (ou ambas as coisas... ah, a nossa ambiguidade!), a nudez incomoda. Portanto, minha cara e meu caro, só com tarja. Ou depois de certo horário.
Por que então, diabos, a nudez do índio, ou de um membro duma tribo primitiva na África ou na Austrália, não causa o mesmo efeito? Há alguma diferença entre o corpo deles e o nosso, morfologicamente - e logicamente - falando? Claro, você pode dizer que é natural, que faz parte da cultura deles, essas explicações (pseudo) antropológicas. Nas quais eu mesmo muitas vezes me apoiei. Mas, naquele dia, as cólicas nos neurônios estavam realmente de matar!
Então, a questão é essa? Cultural? Pois bem. Peguemos outro exemplo: o naturismo também é um produto cultural. Ao menos, de alguns grupos específicos. Jamais vi uma reportagem sobre essa prática na TV aberta sem que se recorresse às horríveis tarjas. Por que essa diferença?
Por que temos olhos maliciosos para a nudez das pessoas em geral mas não para a nudez dos índios? Sinal de respeito por eles? Creio que não. Creio que seja justamente o contrário.
Certa vez, li numa revista especializada em história que, na Roma antiga, as mulheres das classes mais abastadas e que, por isso, contavam com escravos para os serviços domésticos, tinham todo o pudor em se despir diante de homens que não fossem seus maridos, por exemplo. Claro, nesse ponto, elas não diferiam das pessoas dos nossos tempos. Mas - pasmem - elas não tinham nenhum constrangimento em tomar banho, por exemplo, na frente de seus escravos, inclusive os do sexo masculino. Claro, por serem escravos, por não serem cidadãos romanos, eles não eram seres humanos, como o seria um romano livre. Eram coisas, animais domésticos, mas não gente.
Não se passará o mesmo na nossa visão da nudez adâmica dos índios e demais povos? Em outro tópico em que tratei da cineasta Leni Rienfesthal, comentei seu trabalho fotográfico com tribos africanas. A matéria que li no jornal na ocasião trazia algumas das fotos que ela tirara na ocasião. E nelas via-se nitidamente o pênis de alguns dos homens da tribo. Foi a única vez em que vi um nu frontal num jornal de grande circulação, voltado para o público elitizado. Por quê?
A, digamos, "nudez primitiva" não nos incomoda. Não afeta nosso pudor. Simplesmente por ser primitiva. Por mais que procuremos ter uma visão despida de preconceito em relação aos nossos irmãos não "civilizados", por mais que nos preocupemos com sua condição, que respeitemos e nos encantemos com sua cultura, ainda assim o vemos como inferiores a nós. Ainda o vemos como num estágio inferior ao nosso. Numa forma de vida mais inocente, mais pura. Ainda o vemos como crianças, como incapazes.
O adulto, por várias ou todas as razões do mundo, vê-se superior à criança. A nudez de um menino de apenas 05 anos, por exemplo, jamais provocaria uma reação negativa num espaço público, repleto de senhoras. Não preciso dizer como essas mesmas senhoras reagiriam à visão da nudez de um adulto. Ela incomodaria não pela nudez em si, mas por se tratar de um adulto. E de um adulto "civilizado", pois aí ele seria um igual.
Anos antes ainda a esse programa com os índios, lembro-me de uma matéria no "Fantástico" sobre as péssimas condições de vida dos internos num manicômio. E, num determinado momento, a câmera conservadora da Rede Globo não teve nenhum problema em mostrar, ainda que rapidamente, uma interna completamente nua tomando banho de sol no pátio imundo. Claro, assim como o primitivo, o louco também é uma criança, um incapaz. Sua nudez jamais me ofenderá pois eu sou adulto, responsável, civilizado.
A coisa é tão sutil e, ao mesmo tempo, tão grave e irônica que, se de repente as diversas mídias, por exemplo, começassem a exibir índias nuas para o deleito dos marmanjos de plantão, ela, a despeito do machismo, estaria mostrando um pouco mais de respeito por essas mesmas índias pois, ao contrário do que se faz hoje, elas, com suas vergonhas tão altas e saradinhas, estariam sendo mostradas como o que realmente são: como mulheres tão mulheres quanto uma advogada com um escritório na Av. Paulista ou uma atriz de Hollywood ou uma dona de casa da periferia de Salvador. E não como bichos que vivem no meio do mato.
Mas, imaginemos o melhor dos cenários: a nudez, seja ela "civilizada" ou "primitiva", ser mostrada como o que realmente é - algo belo que merece respeito e admiração.